
Aquela última folha de outono decidiu que não sucumbiria aos caprichos do inverno; foi então que descobriu que estava fadada a ser vermelha para sempre.
AmeRiCanDo: verbo reflexo; brincando de tomar modos americanos; buscando adaptar-se ao modo de vida americano, embora senhora de uma alma cosmopolita e apesar da saudade







Conheço todas as ruas por onde passo, poderia percorrer algumas de olhos fechados. Os cheiros e mal cheiros, o clima, a brisa, a luz incomparável que dá vida a tudo ao redor . A cor do mar que se insinua entre dois enormes prédios que posso ver através da janela. O sotaque nordestino, as expressões irreverentes que saem fácil e me roubam um sorriso . A comida farta, o sabor apurado, as frutas que muita gente do lado de lá nem faz idéia que existem. Tudo tão familiar, tão parte de mim. Mas me sinto estranha. Passo despercebida quando transito na multidão que se esbarra nos shopping centres; nenhum rosto me parece conhecido, não me lembram nada, tudo novo como quando aquí pisei pela primeira vez. Nas filas do supermercado, todas intermináveis, fico observando as pessoas como se não estivesse ali, como se fosse mera espectadora. Enquanto isso minha mente se ocupa em traçar comparações de toda ordem e me leva a crer que hoje sou um misto de coisas que as vezes nem combinam, o que de imediato me garante um certo ar de satisfação. Sou aquela mulher na fila que, de pé, abaixa as alças da blusa para amamantar o filho impaciente. Sou também o pudor de fazê-lo em tal ambiente, apinhado de gente e saio para onde sempre há um lugar reservado aos cuidados com os bebês. Sou o cliente que reclama do preço registrado, totalmente diferente do que está disposto junto ao produto na prateleira, e fica a esperar por um longo tempo por alguém que resolva o impasse, quando enfim decide ele mesmo sair em busca da etiqueta para provar que está certo. Mas sou também o cliente que tem sempre razão e não precisa mais do que afirmar que o preço registrado não está correto e dizer, ele mesmo, o valor a ser considerado. Sou a pessoa que fura a fila como se ninguém pudesse vê-la, a que deixa o carrinho guardando seu lugar e fica a ir e vir, trazendo lotes de produtos até enchê-lo por completo, a que obriga a todos a esperar para que vá buscar algo que esqueceu, a que não teve aprovação do cartão de crédito e resolve ligar para a central e declarar alto e em bom tom tudo o que não nos interessa sobre sua vida financiera, sou o cliente de trás que esbarra o carrinho em seu tornozelo e não pede desculpas, o rapaz que trabalha como caixa e não se dirige a você com um cordial bom dia ou ainda um volte sempre…Mas sou também uma certa formalidade nas relações, uma gentileza que muitas vezes nos distancia de tão cuidadosa, uma fila onde as pessoas não se tocam, um não saber da vida do outro que nos mantém na superficie, um milhão de desculpas que se diz por minuto, a preocupação em não causar problema ao próximo. Sou cidade grande e cidade pequena, muro pichado, lixo nas calçadas e casas sem muros, multa para quem joga papel da rua. Sou medo de ser assaltada ( estou em pânico!) e da mesma forma a certeza de que ninguém invadirá minha propriedade. Estrangeira em minha própria terra, sou também cidadã, totalmente indignada.

400 Hungry People, by JAOP.S. Espero que não mudem o nome da campanha "Fome Zero" para "Insegurança Alimentar Zero", acho que Betinho não aprovaria.
YARDSALE



http://www.bookrags.com/history/popculture/prom-bbbb-02/
Há quem diga que a grama do vizinho é sempre mais verde, pois eu acrescentaria que as tulipas que ele cultiva são também mais, muito mais, bonitas. É bom frisar que não há o minímo efeito especial na foto, as flores são cópia fiel do jardim da casa da frente. Você há de concordar que as tais flores parecem feitas de tecido aveludado, mas são vivinhas, juro. E estas quatro não são as únicas que o vizinho ostenta, existem outras tantas, todas enfleiradas contra o muro. Aposto que ele usou régua e tudo quando colocou as sementes na terra com seu dedo pra lá de verde. Morro de inveja, já falei. E fico a me perguntar quando foi que o camarada plantou as tais sementinhas, pois até agora ainda me encontro confusa com a mudança de temperatura, ora frio, ora calor... sem falar nos torós repentinos, nas ameaças de tornados. Já ouvi falar que ele começou cedo, desde outubro passado, no outono. Até as plantas obedecem a uma programação rígida, pelo menos por aqui. E elas sabem direitinho quando devem dar o ar de sua graça. Acho que vai levar um tempo para eu me acostumar com isso. Mal chegou a primavera e os americanos já estão se preparando para o verão. E não é só de flores e sementes que estou falando. O guarda roupa deles já está abarrotado de shorts e sandálias, chapéus e protetores solar. As roupas em tom pastel, que celebram a primavera, já estão em promoção nas lojas e ningúem dá mais quase nada por elas. Olhando assim, pareço mais com os bombeiros da cidade, sempre alertas aos chamados emergenciais, apagando incêndios aqui e ali...sem programação certa para o dia de amanhã. Afinal, por aqui ninguém arranjou ainda um jeito de prever se a casa vai pegar fogo ou se seu gatinho vai ficar preso no telhado. Mas por isso mesmo, os meus conterrâneos deixam centenas de dólares nas companhias de seguro. Na terra dos planejamentos estratégicos, melhor pagar para não ver, just in case.