1 de jun. de 2016

Sobre a nem Sempre Confortável Zona de Conforto


Está bem, você já explicou e eu entendi que parece mais fácil ficar onde está e com quem está, afinal de contas o cenário é familiar, os personagens já se conhecem e, na medida do impossível, se suportam, quando não estão se odiando. Isso vale pra casais, tanto quanto pra relações de trabalho, filhos adultos, amigos, relacionamentos em geral. Mas não me venha falar de zona de conforto quando o que você está fazendo é nada menos que destilar por aí o seu desconforto.       

A menos que você seja masoquista e passe a assumir isso publicamente, ou mesmo para si ou ainda para o sujeito de suas queixas, vamos combinar que “zona de conforto” não é exatamente o lugar em que você diz se encontrar agora. Entenda-se por conforto, como bem rezam os dicionários, bem estar, aconchego. Se não é isso que você sente ao explicar porque não se move rumo ao desconhecido, vamos considerar que pode estar mesmo acostumado com o desconforto. E isso acontece com mais frequência do que você e eu pensamos.  

Às vezes a gente pode não se dar conta que tem vivido sob o signo do desconforto há um certo tempo. Muitas vezes acostumados a sermos destratados, explorados, avacalhados, desprezados, a trabalharmos pra pagar as contas e nada mais do que isso, a sermos avaliados de forma mesquinha, obrigados a só dizer sim, a só recebermos amor e atenção em troca de algo, a (nos) perdermos, a escorregamos nos tapetes indevidamente puxados… que qualquer coisa que sai desse padrão parece pouco com a aquilo que chamados de zona de conforto.

Não vamos entrar aqui no mérito das possíveis causas para comportamentos do tipo. Isso a gente deixa pra os psicólogos decidirem, se é que servirá para algo no futuro.  Se você suspeita que a forma como seus pais o trataram ou deixaram de tratar foi ou é imperdoável, que aquela professora que fez com que você copiasse a mesma frase 200 vezes o deixou bloqueado, que seu primeiro chefe, que morria de inveja de você e por isso o tratava com desdém, o impede de crescer profissionalmente, ou ainda que as sequelas do último relacionamento  amoroso o tornaram  escaldado,  passe a duvidar de todas estas premissas.  Isso mesmo, duvide.

Bata o pé e diga a si mesmo que nada disso faz sentido. Que você é capaz de resistir aos desafios naturais, e ainda, segundo Darwin, estará contribuindo para que sua nova atitude seja herdada pelos seus sucessores, sem falar em seus contemporâneos, que terão mais condições de sobreviver às intempéries da vida do que os que se sentem confortáveis frente ao desconforto.  Portando, caso não consiga se mover em nome de si mesmo ou si mesma, faça-o em nome da evolução da espécie. No final, todo mundo sairá ganhando. Até você.  

 

11 de mai. de 2016

Depois do Foi Bom pra Você ?


Então vamos nós pra segunda parte da história, quando você terminou de viver um momento de puro êxtase, e reafirma “…então tá combinado é quase nada...” Volta pra casa sorrindo feito boba e passa o dia transpirando  as emoções e o presente basta em si mesmo. Sim foi bom, bem bom, pra mim.   

Você se sente grata por ter se permitido ser intensa, verdadeira, prazenteira.  Por reafirmar que sabe como conduzir horas que sejam de puro deleite, sem cobranças, sem culpa, sem limites desnecessários, e também com respeito e cafuné.  Até aí tudo bem, tudo sob controle.

Então uma hora dessas você não resiste e deixa escapar que as lembranças continuam a fazer festa em suas memorias (ahhhh, esses malditos aplicativos que mantêm a proximidade ao alcance dos dedos!) e o lado de lá replica com a mesma disponibilidade.   Foi bom pra você, foi bom pra ele. Mas e daí?
Daí que é sempre bom ouvir os sinos dobrarem e as borboletas girarem no estomago, mas a questão é que você passa a desejar mais. E haja borboletas e haja estômago.     

Chega então a hora que você descobre que esta brincadeira está tomando o seu tempo, roubando seu juízo, ocupando um espaço na sua rotina que estava quase totalmente voltado pras tempestades em copos d’agua que a assaltaram depois da baixa de hormônios ou para a sua coleção particular de bichos de sete cabeças. Sorte sua. Mas, imagina você, se agir rapidamente, dará tempo de retomar o controle da situação .       Faça me rir.

No máximo dá pra elaborar um discurso do tipo “deixa ver no que vai dar”. E aí, depois de mandar ver um papo reto com seu alter ego, vem um apelo: deixe. Deixe que as coisas se estabeleçam sem que você tenha que traçar um plano, seja de fuga ou de ataque. Deixe que os sentimentos se misturem e não se expliquem e te tirem do sério e desequilibrem tudo.  Deixe que o sabor da brincadeira te surpreenda e sapateie sobre as suas verdades. Desapegue de suas crenças baseadas em amores antigos ou recentes que sejam. Resista à tentação de perguntar à sua melhor amiga o que acha que você deveria fazer; ela também vai fingir que sabe como escapar ilesa de armadilhas do tipo. Não perca seu tempo e nem seu crédito com o divino fazendo promessas que você sabe que não vai cumprir, do tipo “esta é a ultima vez que…”.  

Enquanto isso, aproveite as boas vibrações do momento pra contagiar a sua rotina de novas conquistas. Se de fato você fizer questão de manter alguma coisa sob controle, que seja sua vida profissional, seu orçamento doméstico, sua relação com os que lhe são caros e com você mesma. Caso não viva sem fazer planos, que se empenhe em planejar sua próxima viagem de férias, aquele salto na carreira que passa pela aprendizagem de uma nova língua ou coisa que o valha. Se não sobrevive sem fazer promessas, que foque naquelas que você fez no início do novo ano, que incluiu, com certeza, dar início a um programa de atividades físicas ou uma dieta mais saudável em que você troca sem tanto esforço arroz por quinoa.   Fora isso, caro leitor, qualquer mania de explicação vai tornar você um arremedo de si mesmo. E, vamos combinar, a gente já não tem mais idade pra isso.  
 

 

 

 

 

22 de abr. de 2016

Aos Escaldados




 

Depois das 50 primaveras, não tem como ser diferente: nos tornamos escaldados. Já passamos dificuldades, experimentamos dissabores e então redobramos os cuidados pra que aquele sofrimento de outrora não nos roube o juízo mais uma vez. Não adianta. Mesmo que agruras semelhantes nunca venham a se materializar, o sentimento de que elas possam voltar e detonar o nosso (pseudo) equilíbrio é recorrente e muitas vezes nos torna escravos de um temor que entorpece.

Deve ser por isso que os consultórios psicológicos estão lotados de senhores e senhoras de meia idade e as happy pills venham sendo consumidas como nunca. Nada contra nem um nem outro. Eu mesma sou adepta de ambos e posso garantir que, junto a outras estratégias de sobrevivência, funcionam muito bem. Mas enquanto escaldados, nos fazemos reféns de um comportamento que se solidificou no passado e nos acompanha em situações que nada têm a ver com o que eventualmente aconteceu. E mesmo que tenham, são de fato outras circunstâncias. Mas vai explicar isso pro seu superego repressor.   

Vou ilustrar. Um dia um companheiro de longas datas decide ir embora sem dizer adeus. Sem mágoas implícitas; foi bem assim que aconteceu e já passou. Anos depois você se vê evitando relacionamentos duradouros que é pra manter o controle da situação. Pra não ver mais ninguém indo embora de fininho sem explicação plausível, afinal nem tem dado chance de um transeunte desavisado entrar de verdade em sua rotina por horas extras que sejam. Viver o momento é a máxima, não foi pra isso que você começou a meditar? Tudo sob controle, imagina-se, a não ser pelo fato da gente se acostumar a dormir com o medo de sofrer outra vez.   

Então você descobre que vai sim sofrer outra vez. E outra e mais outra. Porque sem dar a cara a tapa a vida se torna muito previsível e desinteressante. E descobre também que este sofrimento é inédito, não tem nada a ver com o que passou, e vêm junto com uma série de novos prazeres, quase todos imperdíveis. E que eles têm um preço. E que ao mesmo tempo também podem ser fortuitos e gratuitos. E que você não vai entender nada realmente sobre o que está passando e vai querer explicar o inexplicável. E não vai conseguir. Dai vai lembrar que já passou dos 50 e que isso pouco importa.       
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21 de abr. de 2016

Sim, Somos Belas



 

Minha mãe bem me avisou, enquanto  me descabelava para por em dia as matérias escolares às vésperas de um vestibular, almejando uma carreira profissional promissora que me garantisse um oficio digno e bem remunerado, que o melhor emprego era mesmo um bom marido. Claro que não se referia a um homem belo, recatado e do lar, pois estes predicados eram certamente restritos, nos idos anos 80, às mulheres casadoiras. 

Provocada, promovia discursos em que quase sempre terminavam com uma exclamação indignada da genitora, que dizia: “esta tem cabelinho na venta”, e completava “vai chorar lágrimas de sangue”. Mesmo quando não era capaz de entender o que o tal cabelinho na venta significava pra valer, me negava a aceitar que algo muito ruim estava necessariamente destinado àquelas mulheres que ousassem transgredir a ordem de um tempo que já havia passado. Teimosa, paguei pra ver.

As lágrimas de sangue acabaram por vir, pra mim, pras recatadas e recatados ou muito pelo contrário, obviamente por motivos distintos. Não me consta que alguém escape das agruras inerentes `a nossa condição de passageiros de uma fração do tempo, sejamos nós do lar ou não.  A propósito, sou do lar, ou melhor, dos lares. Embora tenha vivido até então em 28 moradias ao longo de um pouco mais  de meio século e  investido firmemente no sonho da asa própria, me divirto em distribuir cores pelos vãos da sala de visitas, criar sabores inusitados na cozinha que me cerca e onde são mais que bem-vindos aqueles que prezo,  organizar em caixinhas de todos os tamanhos minhas bugigangas e papéis que contam histórias. Sem falar que sinto prazer em perfilar os livros que mais gosto em estantes, mesas de cabeceiras e banquinhos ao redor da casa.  Mas sou também da rua; adoro bater perna sem rumo e nem hora pra voltar.  

Agora, vamos combinar que, recatada, nunca fui. E que, não sei porque, é impossível lembrar de um momento sequer em que o tal recato tenha me feito falta.  Me ressentiria por certo caso o respeito ao próximo, a integridade e a capacidade de me maravilhar, traços de caráter que admiro,  fugissem de minha alçada. Mas o recato, confesso, muitas vezes me assusta. Especialmente quando é indicado como sinônimo de decência, honestidade e decoro e então usado convenientemente por homens e mulheres para legitimar as suas próprias faltas.

Recato nada tem a ver com o empenho em proteger a sua própria reputação, como rezam os dicionários. Ao contrário, pode mesmo comprometê-la seriamente.  Com quantas chicotadas se faz uma mulher recatada? Com quantos mil reis? Quantos segredos se escondem sob mantos, vestidos compridos e véus? Quantos centímetros de pele expostos para justificar um estupro?  Quantos sins ainda serão proferidos no lugar da vontade de dizer não e vice versa?    

Não foi à toa que virei noites a fio e bati boca pra me livrar de um estigma que ainda compromete o caminhar de tantas mulheres ao redor do mundo e sobrevive, muitas vezes impune, nos porões de  sociedades machistas.  Não foi à toa que encorajei minha filha a valorizar a sua própria existência e seus desejos e se lançasse em busca de sua plenitude, mesmo quando a sociedade parecia não estar de acordo com suas escolhas. Não, não foi à toa que mostrei a meu filho que por trás de toda aparente fragilidade feminina há um admirável e incessante ser que pulsa e pensa, se supera e move o mundo; e não foi com palavras que isso se deu. Não é à toa que sou grata a meu pai por não permitir que eu me rendesse a normas descabidas que me desvalorizassem como ser humano e a minha mãe que, finalmente, se convenceu que minhas escolhas eram legítimas, embora não convencionais.     

Sim, somos belas. A revelia do que escolhemos para vestir e de como construímos e recriamos relações baseadas no respeito mútuo, na forma como nos lançamos sobre os nossos sonhos e buscamos o próprio prazer, na maneira como nos desdobramos em facetas que se sobrepõe e nos fazem encantadoras, mesmo quando exaustas. Podemos ser do lar ou não, desde que isso nos dê e gere satisfação e intensifique a nossa plenitude. `As recatadas de plantão, minhas desculpas, mas não me representam.


"Eu sou à esquerda de quem entra. E estremece em mim o mundo.
(...) Sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro.
Sou um coração batendo no mundo." 
 Clarice Lispector