25 de set. de 2009

Pretérito Perfeito

Brincar com as palavras sempre foi seu jogo favorito. Ainda pequena, me aventurava em uma busca incansável pelas estantes da biblioteca repleta de livros em busca de um pequeno exemplar de capa azul que guardava alguns dos poemas que gostava . Pouco entendia o código escrito e menos ainda o que dizia a mensagem travestida de signos, mas me rendia fácil a cadência das palavras que pareciam criar vida na medida em que você as recitava. Conheci o fascínio das histórias infantis que você criava, ambientadas no labirinto da imaginação. Voamos em um cavalinho misterioso que, quase todas as noites, se aproximava da janela, sem ter idéia de onde poderíamos chegar. Foi quando você me fez acreditar em sonhos e me encorajou a cultivar minhas próprias aspirações. Aprendi então a amar as letras e mais tarde o universo que habita as entrelinhas.

No entanto, logo percebi que a mais valiosa lição que aprenderia com você jamais seria proferida através das palavras. Sua atitude generosa como ser humano, o espírito conciliador, o posicionamento crítico, a dedicação ao trabalho, o respeito às diferenças, o amor incondicional aos familiares e amigos, revelados através de uma gentileza ímpar e um bom humor infindo, falavam por si. Com certeza, a forma equilibrada com que viu o mundo, sem se render aos sobressaltos dos extremos, mérito dos sábios, será ponto de referência para aqueles com quem conviveu.

Ficará a saudade de seu sorriso fácil, do abraço franco, da mente fértil, da maneira como incentivou a mim e a meus irmãos a nos valorizarmos e seguirmos confiantes rumo às nossas conquistas. Ficarão as fotos que contam sua história, as cartas e emails trocados, o livro que publicou. Sem dúvida, ficarrão as marcas indeléveis de sua presença em nossa vida, porque pessoas como você, pai, não passam.

Naquela última tarde no hospital, quando as palavras pareciam não dizer mais nada, soprei no seu ouvido a mesma música que, inúmeras vezes, cantou para me ninar. Com o auxílio majestoso de um doce violino, deixei que o som de Sertaneja o embalasse e então, desta vez, você dormiu. E descansou.

Agora, a saudade sussurra baixinho uma outra melodia, que canta uma certeza: aonde quer que eu vá levo você no olhar...

15 de set. de 2009

Dúvida Existencial




Alguém de um lado da linha dá início ao diálogo supostamente corriqueiro:

- “Associação dos Pobres e Desvalidos da Última Crise Financeira Mundial Tentando Sobreviver Dignamente”, bom dia, como posso ajudar?

- Bom dia! Gostaria de falar com o Senhor João Não sei das Quantas, por favor…

- Quem deseja? – pergunta a voz se esforçando em parecer impessoal.

- Diga que é a Adriana.- fingindo ser pessoal.

- Adriana de onde?

Não sou muito de titubear frente a perguntas desconcertantes, mas esta me tira do sério. Na verdade o “Quem deseja?” já me desconcentra. Não é à toa; o dicionário Aurélio explica a minha dispersão: Desejar- querer a realização, a posse de; apetecer; ambicionar; cobiçar. É no mínimo inadequado quando seu intuito é simplesmente obter uma informação mais clara de alguém que, até segunda ordem, não lhe desperta nenhum tipo específico de desejo . Seria perfeito se a ligação fosse, por exemplo, para o Gianechini; a resposta estaria na ponta da lingua:

- Sou eu, Adriana, quem deseja; eu e a torcida do Flamengo, a comunidade Eu Odeio a Marília Gabriela, o bloco de carnaval Mamãe eu quero ser a Preta Gil …

Pois bem, depois de vencida essa primeira etapa, vem a insuperável “Adriana de onde?” Já tentei ensaiar a resposta, simples que fosse, mas a mania de crise existencial sempre me persegue e então me remete imediatamente a um conflito filosófico devastador, algo comparado a ter que tentar explicar no perfil do Orkut com poucas palavras o “Quem sou eu?” É bom salientar que é divertidíssimo navegar pelas páginas dos orkutianos, amigos ou não, e checar como descrevem, ou não, a si mesmos; há comentáros imperdíveis, dignos de deixar Sofia, a personagem do livro de Jostein Gaarder, com orgulho de seu próprio mundo.

Tento então respirar fundo e responder algo que, imagino, atenda aos anseios do interlocutor:

- Adriana, filha do Batista e da Rosa, irmã do Alexandre, Sérgio e Ana Lúcia, mãe do Filipe e da Dani, boadrasta da Nina e do Matheus, esposa do Marcus, ex-mulher do Vinícius, que antes namorou o… - de repente, acaba virando novela mexicana.

Nova tentativa:

- Adriana que trabalhou muito tempo como educadora, em Fortaleza, mas por ora está desempregada, cheia de planos de trabalho que continuam engavetados por pura falta de serotonina, comum no climatério, e por isso sem ânimo e/ou reserva financeira para colocá-los em prática…

Melhor ser pragmática:

-Adriana, aqui de Nevada, nos Estados Unidos, que morava no Kentucky, depois de se mudar de Fortaleza, onde chegou aos 11 anos, vinda do Rio de Janeiro, para onde se mudou quando saiu de Washington DC, onde circunstancialmente nasceu.

Melhor ser sincera:

- Adriana, ele não me conhece…na verdade nem eu me (re) conheço mais. Depois dos 40 as pálpebras começaram a pesar e cobrem a parte anterior dos olhos; manchas senis multiplicam-se indiscriminadamente na pele lembrando que um dia me estatalei feliz da vida na areia quente de uma praia qualquer achando que ia abafar dentro do vestido de alcinhas branco na tertúlia do clube; as marcas das espinhas, que deixei o namorado espremer quando não havia nada mais interessante a fazer naquele domingo a tarde, parecem crateras quando vistas no espelho que aumenta a imagem dez vezes que comprei pra fazer as sobrancelhas desde que passei a não enxergar mais de perto como antes; os cabelos brancos, devidamente coloridos de 20 em 20 dias, já são maioria absoluta no universo capilar; os joelhos recebem um revestimento de rugas oriundo da pele das coxas, cujos músculos não as suportam mais, literalmente; as veias das mãos, creia, saltam e me pergunto se elas sempre foram azuis…

O jeito é mentir:

-Adriana, ele sabe quem é.

Na dúvida, isso sempre funciona.


Photo: Trabalho bordado por Joetta Maue que exibe instalações em vários museus como Historic Interpretations at Peabody Historical Society Museum em Salem, Ma., Masur Museum em Monroe, LA., e no ReSurrect at Mesa Contemporary Art Center, em Mesa, Arizona. Em breve estará no Lion Brand Yarn Studio em NY, NY e na Gallery LELE in Tokyo, Japan.
Ela mantém um blog sobre trabalhos manuais muitíssimo interessante, o Little Yellowbird: http://www.littleyellowbirds.blogspot.com/
e seu trabalho pode ser visto no http://www.joettamaue.com/

Vale a pena conferir!