Minha mãe bem me avisou, enquanto me descabelava para por
em dia as matérias escolares às vésperas de um vestibular, almejando uma
carreira profissional promissora que me garantisse um oficio digno e bem
remunerado, que o melhor emprego era mesmo um bom marido. Claro que não se
referia a um homem belo, recatado e do lar, pois estes predicados eram
certamente restritos, nos idos anos 80, às mulheres casadoiras.
Provocada, promovia discursos em que quase sempre terminavam
com uma exclamação indignada da genitora, que dizia: “esta tem cabelinho na
venta”, e completava “vai chorar lágrimas de sangue”. Mesmo quando não era
capaz de entender o que o tal cabelinho na venta significava pra valer, me
negava a aceitar que algo muito ruim estava necessariamente destinado àquelas
mulheres que ousassem transgredir a ordem de um tempo que já havia passado.
Teimosa, paguei pra ver.
As lágrimas de sangue acabaram por vir, pra mim, pras
recatadas e recatados ou muito pelo contrário, obviamente por motivos distintos.
Não me consta que alguém escape das agruras inerentes `a nossa condição de
passageiros de uma fração do tempo, sejamos nós do lar ou não. A propósito, sou do lar, ou melhor, dos lares.
Embora tenha vivido até então em 28 moradias ao longo de um pouco mais de meio século e investido firmemente no
sonho da asa própria, me divirto em distribuir cores pelos vãos da sala de
visitas, criar sabores inusitados na cozinha que me cerca e onde são mais que
bem-vindos aqueles que prezo, organizar
em caixinhas de todos os tamanhos minhas
bugigangas e papéis que contam histórias. Sem falar que sinto prazer em perfilar os livros que mais gosto em estantes, mesas de
cabeceiras e banquinhos ao redor da casa. Mas sou também da rua; adoro bater perna sem
rumo e nem hora pra voltar.
Agora, vamos combinar que, recatada, nunca fui. E que, não
sei porque, é impossível lembrar de um momento sequer em que o tal recato tenha
me feito falta. Me ressentiria por certo
caso o respeito ao próximo, a integridade e a capacidade de me maravilhar, traços
de caráter que admiro, fugissem de minha
alçada. Mas o recato, confesso, muitas vezes me assusta. Especialmente quando é
indicado como sinônimo de decência, honestidade e decoro e então usado
convenientemente por homens e mulheres para legitimar as suas próprias faltas.
Recato nada tem a ver com o empenho em proteger a sua
própria reputação, como rezam os dicionários. Ao contrário, pode mesmo
comprometê-la seriamente. Com quantas
chicotadas se faz uma mulher recatada? Com quantos mil reis? Quantos segredos
se escondem sob mantos, vestidos compridos e véus? Quantos centímetros de pele
expostos para justificar um estupro? Quantos
sins ainda serão proferidos no lugar da vontade de dizer não e vice versa?
Não foi à toa que virei noites a fio e bati boca pra me
livrar de um estigma que ainda compromete o caminhar de tantas mulheres ao redor do mundo e sobrevive, muitas vezes impune, nos porões de sociedades machistas. Não foi à toa que encorajei minha filha a valorizar
a sua própria existência e seus desejos e se lançasse em busca de sua
plenitude, mesmo quando a sociedade parecia não estar de acordo com suas
escolhas. Não, não foi à toa que mostrei a meu filho que por trás de toda aparente fragilidade feminina há um admirável
e incessante ser que pulsa e pensa, se supera e move o mundo; e não foi com
palavras que isso se deu. Não é à toa que sou grata a meu pai por não permitir que
eu me rendesse a normas descabidas que me desvalorizassem como ser humano e a
minha mãe que, finalmente, se convenceu que minhas escolhas eram legítimas,
embora não convencionais.
Sim, somos belas. A revelia do que escolhemos para vestir e
de como construímos e recriamos relações baseadas no respeito mútuo, na forma
como nos lançamos sobre os nossos sonhos e buscamos o próprio prazer, na
maneira como nos desdobramos em facetas que se sobrepõe e nos fazem
encantadoras, mesmo quando exaustas. Podemos ser do lar ou não, desde que isso
nos dê e gere satisfação e intensifique a nossa plenitude. `As recatadas de
plantão, minhas desculpas, mas não me representam.
"Eu sou à esquerda de quem entra. E estremece em mim o
mundo.
(...) Sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro.
(...) Sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro.
Sou um coração batendo no mundo."
Clarice Lispector
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