29 de jul. de 2012

Bagunça pra Chamar de Eu


 Dizem que quando eu era garota e arrumava minhas gavetas, ficava muito brava quando as abria de novo e observava que o conteúdo destas não estava mais no devido lugar. Chegava a esbravejar perguntando quem havia feito tal desfeita comigo depois de tanto trabalho para alinhar as roupas, umas sobre as outras, com capricho que beirava a perfeição. De nada adiantava minha irmã explicar que o simples movimento de abrir e fechar as gavetas causava tal desastre natural.  Demorou um certo tempo e algumas sessões de análise para que eu entendesse que o ir e vir das roupas na gaveta, a principio arrumadinhas e sob meu controle, não representava mais do que uma metáfora do que eu ia ter que enfrentar na vida adulta. Sem falar em outros tantos anos para que eu aprendesse a tirar proveito disso.
Hoje, quase meio século abrindo e fechando gavetas, posso dizer que, às vezes, ainda gostaria de ser a feiticeira do seriado dos anos 70 e torcer o nariz para ver, em segundos, tudo arrumadinho e funcionando perfeitamente ao meu redor.  Mas parece que isso não apresenta a menor graça. Ia me sobrar muito tempo para preencher com outras coisas de gosto duvidoso, como discutir a relação, tentar interpretar citações aparentemente despretensiosas nas paginas virtuais dos filhos, contar as ruguinhas e manchas senis na pele que insistem em se multiplicar ( odeio fazer contas), pensar que no lugar de fulano ou cicrano eu faria desta maneira e não daquela, me atolar no trabalho pra espantar o fantasma do ócio, criativo que seja, ou armadilhas do tipo. Definitivamente, tolerar a nossa própria bagunça, no plano interior ou físico, nos livra de certos atos de soberba desnecessários, eu diria, disfarçados de boas intenções.
Então comecei a chamar de baguncinha redentora aquela que a gente mantém pra não perder a noção de que temos todos um cantinho de desordem pra chamarmos de “meu” e que também atende pelo nome de “eu”.  Um dia a gente percebe que, enquanto se está em condições de ver o tempo passar, melhor aceitar que as coisas saem do lugar, assim como as pessoas, o que elas pensam e como agem, pra não corremos o risco de nos enterrarmos vivos ou, na melhor das hipóteses, desenvolvermos uma úlcera crônica que nos incomodaria tanto quanto aqueles ao nosso redor.
Desta forma, faz uns dias que minha sala de visitas ficou parecida com um ateliê de artes e eu resisti bravamente à tentação de fazer promessa para o milagroso São Aspirador de Pó ou fazer novena pra Nossa Senhora da Poeira Debaixo do Tapete. Deixei que as telas e os pincéis me convidassem para um passeio, desviei sem reclamar das caixas de tintas dispostas displicentemente entre o sofá e parede, me diverti com as cores e texturas que lancei sobre o branco e cobri de tantas camadas quanto desejou meu olhar cada vez que por ali passei.
Minha sala não é mais a mesma. Nem eu. Algo me diz que as minhas gavetas vão ter que buscar ajuda profissional ,caso insistam em me ver dando chilique cada vez que, ao se abrirem, apresentarem uma nova disposição para a arrumação de outrora.