15 de set. de 2009

Dúvida Existencial




Alguém de um lado da linha dá início ao diálogo supostamente corriqueiro:

- “Associação dos Pobres e Desvalidos da Última Crise Financeira Mundial Tentando Sobreviver Dignamente”, bom dia, como posso ajudar?

- Bom dia! Gostaria de falar com o Senhor João Não sei das Quantas, por favor…

- Quem deseja? – pergunta a voz se esforçando em parecer impessoal.

- Diga que é a Adriana.- fingindo ser pessoal.

- Adriana de onde?

Não sou muito de titubear frente a perguntas desconcertantes, mas esta me tira do sério. Na verdade o “Quem deseja?” já me desconcentra. Não é à toa; o dicionário Aurélio explica a minha dispersão: Desejar- querer a realização, a posse de; apetecer; ambicionar; cobiçar. É no mínimo inadequado quando seu intuito é simplesmente obter uma informação mais clara de alguém que, até segunda ordem, não lhe desperta nenhum tipo específico de desejo . Seria perfeito se a ligação fosse, por exemplo, para o Gianechini; a resposta estaria na ponta da lingua:

- Sou eu, Adriana, quem deseja; eu e a torcida do Flamengo, a comunidade Eu Odeio a Marília Gabriela, o bloco de carnaval Mamãe eu quero ser a Preta Gil …

Pois bem, depois de vencida essa primeira etapa, vem a insuperável “Adriana de onde?” Já tentei ensaiar a resposta, simples que fosse, mas a mania de crise existencial sempre me persegue e então me remete imediatamente a um conflito filosófico devastador, algo comparado a ter que tentar explicar no perfil do Orkut com poucas palavras o “Quem sou eu?” É bom salientar que é divertidíssimo navegar pelas páginas dos orkutianos, amigos ou não, e checar como descrevem, ou não, a si mesmos; há comentáros imperdíveis, dignos de deixar Sofia, a personagem do livro de Jostein Gaarder, com orgulho de seu próprio mundo.

Tento então respirar fundo e responder algo que, imagino, atenda aos anseios do interlocutor:

- Adriana, filha do Batista e da Rosa, irmã do Alexandre, Sérgio e Ana Lúcia, mãe do Filipe e da Dani, boadrasta da Nina e do Matheus, esposa do Marcus, ex-mulher do Vinícius, que antes namorou o… - de repente, acaba virando novela mexicana.

Nova tentativa:

- Adriana que trabalhou muito tempo como educadora, em Fortaleza, mas por ora está desempregada, cheia de planos de trabalho que continuam engavetados por pura falta de serotonina, comum no climatério, e por isso sem ânimo e/ou reserva financeira para colocá-los em prática…

Melhor ser pragmática:

-Adriana, aqui de Nevada, nos Estados Unidos, que morava no Kentucky, depois de se mudar de Fortaleza, onde chegou aos 11 anos, vinda do Rio de Janeiro, para onde se mudou quando saiu de Washington DC, onde circunstancialmente nasceu.

Melhor ser sincera:

- Adriana, ele não me conhece…na verdade nem eu me (re) conheço mais. Depois dos 40 as pálpebras começaram a pesar e cobrem a parte anterior dos olhos; manchas senis multiplicam-se indiscriminadamente na pele lembrando que um dia me estatalei feliz da vida na areia quente de uma praia qualquer achando que ia abafar dentro do vestido de alcinhas branco na tertúlia do clube; as marcas das espinhas, que deixei o namorado espremer quando não havia nada mais interessante a fazer naquele domingo a tarde, parecem crateras quando vistas no espelho que aumenta a imagem dez vezes que comprei pra fazer as sobrancelhas desde que passei a não enxergar mais de perto como antes; os cabelos brancos, devidamente coloridos de 20 em 20 dias, já são maioria absoluta no universo capilar; os joelhos recebem um revestimento de rugas oriundo da pele das coxas, cujos músculos não as suportam mais, literalmente; as veias das mãos, creia, saltam e me pergunto se elas sempre foram azuis…

O jeito é mentir:

-Adriana, ele sabe quem é.

Na dúvida, isso sempre funciona.


Photo: Trabalho bordado por Joetta Maue que exibe instalações em vários museus como Historic Interpretations at Peabody Historical Society Museum em Salem, Ma., Masur Museum em Monroe, LA., e no ReSurrect at Mesa Contemporary Art Center, em Mesa, Arizona. Em breve estará no Lion Brand Yarn Studio em NY, NY e na Gallery LELE in Tokyo, Japan.
Ela mantém um blog sobre trabalhos manuais muitíssimo interessante, o Little Yellowbird: http://www.littleyellowbirds.blogspot.com/
e seu trabalho pode ser visto no http://www.joettamaue.com/

Vale a pena conferir!

4 comentários:

Andre Santos disse...

Delicioso!! Adorei!!

Carla disse...

Muito bom e divertido texto Dri, parabens!

Matheus disse...

dri...vc eh demaiss!
de situacoes do cotidiano, tira cada tiradaa!

amooo vc!

J L disse...

Eita Adriana, só vc mesmo para captar bem o momento das nossas idades. Me diverti bastante com o texto, mas na verdade o maior foi o "chamamento" para a realidade. E eu acho que tem tudo a ver com o meu "momento atual" ou o momento de um passado recente. Que o diga o "Depois do por do Sol". Mas vc me inspirou e vamos ver se sai alguma coisa. Parabens!