Soube que ela demorou a escolher o vestido em meio a todas as cores de seu guarda roupa. Vestiu pelo menos três, antes de bater a porta e sair de casa. Escolheu um pretinho clássico, com saia rodada e detalhes florais brancos discretos, contrastando com uma barra alaranjada de motivos indígenas que também aparecia na pala da blusa, de onde saltavam o amarelo vivo e o vermelho, que por sua vez se insinuavam sob um leve manto negro. Na cabeça flores, na pele cores. Brincos, anéis e colares, claro, ou não seria Frida.
Tinha planejado a viagem há algum tempo mas não estava sendo fácil se organizar em meio ao ócio; quem tem todo o tempo do mundo parece ter que justificar para si mesmo porque não consegue fazer o que deseja e/ou precisa entre o nascer e o por do sol. Mas há tempos ela havia cansado de dar satisfações sobre sua vida, é bem provável que tenha nascido assim; cabelinho na venta, como diria sua mãe.
Estava ansiosa, mas tentou disfarçar quando se viu em meio ao engarrafamento na entrada da cidade. Impossível que nao fosse chegar a tempo, havia comprado os ingressos com antecedência e feito planos para sair pelas ruas de São Francisco depois da exibição. Que mania essa gente tinha de correr para cidade grande nos finais de semana, todos na mesma hora, pensou, enquanto, parada, era atraída pela paisagem ao redor. Decidiu que talvez seria a hora de olhar um pouco através de outra janela que nao aquela que dava para sua própria imagem. Assim tinha sido durante sua vida inteira, olhar para espelhos e retratar a si mesma. Impossibilitada de andar desde aquele acidente terrível, não lhe restou outra alternativa durante um longo tempo a nao ser conversar com as imagens que fazia de si mesma enquanto aprendia a olhar para dentro. Frida pintava o que via no espelho, mas do lado do avesso. Agora estava ali, resistindo olhar pelo retrovisor para que pudesse perceber o que estava fora de seu alcance, no mundo exterior.
Antes mesmo que se desse por vencida, os carros começaram a se mover novamente e em poucos minutos ela estava em frente ao Museu de Arte, em busca de estacionamento. Faltavam 10 minutos para o início do evento. Pensou que se Dieguito ali estivesse, faria as honras da casa e a mandaria ir na frente para nao perder um minuto da exibição. Mas quem disse que ele não estava? Diego Riviera sempre esteve com ela, de uma forma tão passional que até mesmo a sua imagem no espelho o refletia.
Frida entrou quase correndo no salão principal do museu repleto de pessoas. Esperou em uma fila por mais algum tempo até que dessem sinal para que entrasse na sala. Foi então que a encontrei. Desde o momento em que nossos olhos se cruzaram no meio de toda aquela gente que parecia estar parada, como os carros na entrada da cidade, nos reconhecemos. Nos fitamos por um longo período e quase nos arrastamos, de tela em tela, sem nos perdermos de vista. Eu com os olhos nela, ela com os olhos em mim. Igualmente expostas, passeamos por nossos atalhos pessoais, nos encontramos em algumas esquinas e então estivemos a anos luz de distância em outras. Definitivamente, faltavam algumas cores na minha aquarela que ela tinha de sobra. Achei que, em seu lugar, não suportaria tanta dor e que, se assim fosse, não tornaria isso público mas, no caso de fazê-lo, não seria tão literal e...a neguei três mil vezes antes de concluir que nunca havia me sentido so Frida!
Impressoes pos-exposicao de Frida Kahlo no MOMA de Sao Francisco, em 27 de Setembro de 2008